25.3.10

A perda de um irmão: 13 anos

Diario: Estamos em 1997, tenho 21 anos, e um futuro "promissor" me aguarda. Sou estudante de Economia na Universidade de Brasilia (UnB), estagiario no UNICEF, e vou passar ferias nos Estados Unidos. Que mais que eu quero para minha vida?!?  Nada mal para minha idade! Eu vou para a California em julho, e meus pais, ja' estao na Europa. Meu irmao esta' em seu quarto, lendo e escutando musica, como sempre. De repente, a luz "acende", e  nos damos conta de que estamos sozinhos em casa, eba!  Festa?! Nem tanto. La' estava ele de novo em seu quarto; agora com a namorada de sobrenome "Brilhante". Daniel e' doce, inteligente, um artista e principalmente carismatico. Tudo o que eu nao sou... como posso ser como ele!?! Hoje e' sexta-feira, entretanto, ele esta' diferente. Alguma coisa em sua feicao, uma paz e alegria imensa em seus olhos, algo que nunca vi antes. Esta' preparando sua bagagem para passar o fim de semana em Pirenopolis, na casa de amigos. Da cozinha escuto ele gritar se eu quero acompanha-lo, feliz, e diz que todos seus amigos, que eu tambem conheco, estarao juntos.
Nem da' para eu ir, respondo. Tenho um churrasco programado com a turma do trabalho. Em seguida, ja' estou em seu quarto, olhando para ele. E', as vezes, vou somente para dar uma fisgada nele.  Ali, parado, olhando.... Ele chega e me da' um toque no ombro. Senta ai' que eu quero te contar uma historia, baseada em um sonho que tive ontem, diz. Vai ate' sua mesinha de cabeceira, pega um papel com rabiscos e comeca a ler: "A Vila Icaro nao tem localizacao exata, mas esta' num Rio Grande do Sul, perto de algum Porto Alegre. Tambem sabemos que faz parte da mitologia grega. E' verdade, nao pense que essa historia foi inventada. Comecou na Grecia antiga. Depois de ser aprisionado no Labirinto com seu irmao mais velho, Dedalo pensou na fuga perfeita. Construir asas gigantes, prega-las nas costas e sair voando, pois o mar e terra eram intransponiveis; controlados pelo Deus Minos. Mas tinha um problema, as asas eram de cera! Prontos para escapar da prisao, Dedalo passou a ultima instrucao: Meu irmao, tenha fe’, bata forte suas asas, vamos ate’ uma terra distante, onde dizem ser muito bela. Encontraremos muita fartura, felicidade. Siga-me, pois juntos chegaremos! Comecaram, entao, a bater suas asas, e Dedalo distanciou-se naturalmente. Icaro, talvez soubesse o que era felicidade, talvez quisesse fartura, mas nao estava preparado para enfrentar uma nova vida na terra distante. Naquele momento o que mais lhe aprazia era a sensacao que aquelas asas aladas lhe trazia, de total liberdade, voar. Subir, descer, voos razantes; e mais ainda aquela luz ardente que vinha la’ do ceu e que lhe chamava. Suas asas ja’ estavam pingando… Quando Dedalo olhou para tras, percebeu que seu companheiro nao mais lhe seguia. Desapareceu. Dedalo terminou sozinho o trajeto, chegando a tao sonhada terra distante. Vila Icaro ficou, homenageado. Tem um campo de futebol, uma igrejinha, uma escolinha, um clube, um cassino de oficiais, um monte de casas quase “pre-formatadas” estilo decada de 60 da FAB." Termina de ler, dobra o papel, e diz que e' um presente para mim, que devo guarda-lo para sempre. Nao entendo o por que dele me contar essa historia, mas me emociono com sua felicidade. Entao, pergunto: por que na sua versao Dedalo e Icaro sao irmaos, e nao pai e filho como na mitologia grega? Ele responde que simplesmente nao sabe, e foi dessa forma que viu no sonho. A Vila Icaro, no entanto, existia, e foi onde passamos a maior parte de nossa infancia. Era uma vila militar na cidade de Canoas, Rio Grande do Sul. Era literalmente o paraiso para qualquer crianca que soubesse aproveitar a liberdade de morar em um condominio onde havia tudo para sua diversao. Para os pais nao existia melhor comodidade. Pergunto, entao, se lembra quando me ensinou a andar de bicicleta em um estacionamento da vila, e como ele havia sido paciente naquela tarefa. Responde com um sorriso no rosto: e' logico. Agora e' que nao estou entendendo absolutamente nada, principalmente, esse momento intimo entre nos dois, de trocas de carinhos. A sua historia da Vila Icaro esta' na minha garganta. Tenho que sair daqui, pois estou ficando emocionado. Entao, levanto, olhando para o chao, e digo que tenho que  encontrar uns amigos. Tenha um otimo fim de semana, digo em seguida. Entretanto, ele nao quer deixar de expressar seu sentimento mais uma vez. Fecha meu caminho e me da' um abraco! Abro os bracos, retribuo, e saio do quarto com a certeza de que ali esta' meu melhor amigo. Essa e' a ultima lembranca que ainda guardo dele. Morreu no dia seguinte, tomando banho de riacho. Foi o penultimo final de semana de maio, 1997. Agora, ja' se passaram quatro semanas, e tenho consultas semanais com uma psicologa, e quinzenais com um psiquiatra. Depressao, exclusao social, dentre outros... estou em estado de "luto", isso dizem. Apesar de meu irmao ter sido um portador de psicose maniaco-depressiva, sera' que ninguem consegue "ver" o mesmo para mim? "Vai passar",  estao me dizendo. Devo estar em uma fase mesmo negra. Entretanto, a unica certeza que  vislumbro, e' minha luta contra essa sensacao de vazio, solidao, que fica batendo na minha cabeca. Sera' que tenho consciencia do que esta' acontecendo comigo? Nao. Estou muito confuso,  imagino. Minhas oscilacoes de humor, fases depressivas e maniacas, e principalmente minhas psicoses. Todos meus estados psicologicos me confundem, pois ainda nao consigo separar tais reacoes de Daniel; penso ser  ele a fonte causadora. E' muito dificil para mim, entender que ele nunca foi o responsavel por minhas confusoes mentais, mas sim a heranca genetica que tambem carrego no meu corpo. Eu somente nao sei exatamente quando isso comecou. Se os proprios medicos "da cabeca" nao sabem, imagina eu!  Acho que meu inferninho esta' comecando aqui...

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Personagens

Cassandra: tradutora que trabalha para importante editora especializada em livros de biografia e historia. Ela e' o tipo de pessoa que nao consegue se encaixar numa vida social normal; encontra, muitas vezes, no isolamente, sua fulga, e nos livros seu refugio.

Cassandra: a translator who works for an important publisher specialized in biography and history books. She is the kind of person who cannot fit in a normal social life; she finds, most of the times, in self-confinement,
her scape, and in books, her refuge.
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Napo: ex-filho de militar e roteirista de cinema cuja vida foi acabada pelo alcool e drogas. Esta' em constante conflito interno consigo mesmo: perturbado, afetado. Atualmente, vive de pensao do sindicato.

Napo: ex-military-kid and film screenwriter whose life was ruined by alcohol and drugs. He seems to be always in a long-lasting and permanent state of self-conflict. Nowadays, he lives from the Union's financial support.
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Garcia: cobrador de onibus e membro ativo do partido comunista. Possui ampla biblioteca particular sobre o tema, tornando-se inclusive referencia partidaria. As vezes, seu fanatismo torna-se tao paradoxo que passa a ser ate' mesmo romantico.

Garcia: bus driver and member of the communist party. He became a political reference in the party due to the large collection of books in his private library. Such a fanatic with paradoxical ideas that sometimes he is called "The Romantic".
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Franz: editor de guia artistico-cultural. Participa de projetos pelo mundo afora, geralmente patrocinado por ONG's para atualizar e trocar experiencias. Seu constante desafio e' nao deixar transparecer sua falta de sentimento "nacionalista".